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micaias

Guerra colonial, Angola4

Avatar do autor Jota.Coelho, 12.06.07

 

 


 

 


  

SINAIS DA DISCÓRDIA - Reclamação

 

O abandono da ideia de submissão cega ás leis e à ordem instituídas pelo poder de Lisboa, já não assusta nem é novidade. Nada engendramos que nos distancie do processo que encaixa dentro da realidade terrível da frustração que vai manipulando a nossa vontade prestativa de bons serviços à nação, longínqua e esquecida destes jovens que perdem os melhores dias da sua vida embrenhados nas matas de Angola. Os que comandam à distância fazem parte da hierarquia que esconde uma realidade social de parasitas acantonados por detrás da cobardia anónima dos ignorantes; facto que agrava as dores destes que se batem com azedume e tentam difundir a lucidez constatada na nojenta afronta aos que vão morrendo por causas ainda obscuras, cujos cadáveres servidos nos festins relaxantes como macabros troféus da ganância de lucros e de poder. Sabe-se que nas “festas sociais” alguns gabarolas chegam ao cúmulo de afirmarem que os mortos em combate são uma prova de que as tropas se batem com arreganho e empenho, mesmo até à morte; e a guerra é um sucesso!

  Nota-se uma crescente acção dos infiltrados na complexa engrenagem da administração, que tudo fazem para manipular os dados da verdade dos acontecimentos, enquanto a imagem da frustração se abate sobre nós, joguetes inocentes nesta guerra de interesses obscuros que não aceitamos mas que sentimos com amarga indignação.

  Passada a fase do reconhecimento e da reocupação das vilas e povoações afectadas pelas arrepiantes matanças de Março de 1961, abertas as vias de comunicação e consolidada alguma segurança nos itinerários para o interior norte de Angola, onde a tropa de engenharia tem dado muito do seu esforço e saber na recuperação de pontes e acantonamentos, começamos a constatar que uma corja de usurpadores, portugueses e estrangeiros, se vão instalando e acomodando nos pontos chave da administração pública e empresarial para melhor usufruírem das imensas riquezas destas terras. A impunidade campeia entre eles; as vantagens materiais são abusivas e os bens já nos escasseiam porque essa rede de malfeitores implantou teias que promovem os desvios desde os portos marítimos até aos armazéns da administração militar, com uma grande quantidades de produtos e equipamentos que nunca chegam aos seus verdadeiros fins. Sabe-se que diversos camiões carregados no porto de Luanda se têm perdido no itinerário até ao Grafanil, e também para o Úcua, Caxito e Fazenda Tentativa, sem deixarem rasto. E, quando se trata de reabastecimentos para o interior, até dinheiro do pré tem desaparecido, algumas vezes em hipotéticas “emboscadas” organizadas pelos próprios usurpadores dos bens surripiados. Não é aceitável que roubem a alimentação e os equipamentos que tanta falta fazem aos que passam dias e meses em constante sobressalto e inúmeros sofrimentos para defendem a honra da nação.

 

               

 

Não aceitamos que essa escumalha nos iluda nas suas andanças neste teatro de alienados destruidores de esperanças; pois, são eles os autores morais e materiais das maiores injustiças praticadas na nação portuguesas, com a agravante de fazerem dos militares as suas marionetas. O desaforo aumenta as angústias perante a morte e convida à evasão no fingimento do combate. Talvez esteja aqui a razão do agravamento da nossa revolta e da infidelidade às instituições; porque a repulsa contra os que nos manipulam é grande e nada abona que sujemos as mãos em massacres contra as populações indefesas, que vagueiam à míngua do mínimo de sustento que as lavras podem dar para a sua sobrevivência. Tememos que o mundo assim, asqueroso e a saque, nos possa sustentar a revolta, antes que chegue a degradante alienação colectiva.

  Não podemos esperar que os vermes se regenerem. A defesa da verdade é ponto de honra para não nos amotinarmos; é tempo da proclamação da liberdade que abrande o sofrimento dos povos inofensivos e nos tire deste atoleiro de ambiguidades, onde a morte nos espreita e nos pode ceifar a vida ingloriamente.

                                     

            Quitexe, Janeiro de 1962

Joaquim Coelho

in "O Despertar dos Combatentes" - pedidos para: jotasousa39@gmail.com

 

 


 

 

      NEBLINA VERDE

 

Há sempre uma estranha emoção

quando entramos em nova missão!

 

Ao longe, a Pedra Verde atemoriza;

seus cumes quase tocam as estrelas

e a primeira tentativa de incursão

deixa em nós uma ideia indecisa:

porque se amachucam as flores belas

que a persistente neblina em união

alimenta na verdejante encosta?

 

A distância para a conquista da colina

é uma paixão determinada e paciente;

os aviões bombardeiam sem resposta,

as bombas paridas do seu bojo

rasgam as rochas... esconderijos

e o fogo alastra no capim rasteiro

com gritos longínquos da morte.

 

Mordemos os lábios numa inquietação

  enquanto se aponta o morteiro

  no milimétrico tiro de sorte

para ajudar na diabólica devastação.

Rasgamos o caminho até ao covil,

contra o sol que se inclina embriagado,

e a vontade de silenciar o inimigo

faz-nos avançar no seu encalço

  mesmo correndo o grave perigo

  de sermos apanhados no percalço

das fatídicas emboscadas dos estupores.

 

A noite aproxima-se negra e sombria

  e mais se aguçam nossas dores...

alguns já dormem com a boca fria

e toda a caravana esmorece a praxe.

O arrojo alarga a perigosa viela

para os movimentos do Úcua-Quibaxe;

é como se abrisse mais uma janela

para passarem cargas de esperança,

nas viaturas da terrível caminhada,

em peregrina missão de bonança

até aos confins da encruzilhada.

 

             Quicabo, Junho de 1962

 

 

 

ANGOLA – ATAQUES À PEDRA VERDE

 

Demorou mais de hora e meia a caminhada em viaturas do Úcua até às proximidades do Piri. As tropas são apeadas e continuam a marcha durante mais duas horas, por entre ravinas e morros a norte de Quibaxe. A marcha rápida obriga as pulsações a purificar o sangue com mais vigor e o suor escorre pelas faces. Ainda se sente o cheiro das manhãs orvalhadas pelo cacimbo que as folhas seguram e nos servem para sorver as gotas que atenuam a sede.

As pernas começam a tremer e ainda mal se avistam os morros da Pedra Verde. Uma neblina em dispersão encobre a zona que a tropa pretende tomar de assalto, para atirar os bandoleiros da UPA para bem longe, de modo a evitar os constantes ataques às colunas de reabastecimento que passam para o norte. Depois da primeira tomada da Pedra Verde, esta é a segunda vez que a tropa tenta apoderar-se daquele reduto e esconderijo de terroristas.

Enquanto a aviação e a artilharia bombardeiam os morros, vamos comendo as rações transportadas nas mochilas, para assim ficar reduzido o peso para a subida da encosta. A água dos cantis, morna mas e desinfectada com o quinino para evitar o paludismo, vai sendo consumida gota a gota. Deitados no meio do capim e já na encosta a uns quinhentos metros dos morros, ouvimos os zumbidos das bombas dos PV2 e as explosões subterrâneas. Do outro lado, as tropas do Exército tentam a aproximação pelos escarpados das rochas, coordenando a acção via rádio.

Uma hora depois de acabaram os bombardeamentos, o fumo das explosões das granadas vomitadas pelos obuses de artilharia encobre parte dos morros. E nós saboreamos as últimas bolachas da Manutenção, bebemos os derradeiros goles de água e avançamos na luta até que a Pedra Verde seja nossa! 

Os comandantes de pelotão dispõem o pessoal nas posições previamente combinadas na reunião de oficiais e sargentos. As bazucas vão na frente e os homens das granadas a acompanhá-los; é preciso determinar bem os pontos de tiro para tentar enfiar as granadas dentro dos túneis abertos nas rochas. O capim é cada vez mais curto, o que nos deixa expostos ao fogo inimigo. O primeiro grupo avança pelas escarpas do lado esquerdo, tentando passar para posições viradas a Quibaxe, enquanto o segundo pelotão segue em linha para tomar o lado direito, ficando o terceiro pelotão na cobertura de fogo.

Já nas posições da íngreme encosta, as bazucas começam a sua acção de limpeza dos túneis e, com granadas certeiras, os rebentamentos dão-se bem dentro das entranhas da terra. As armalites cantam o tra-ta-ta-ta e começam a mandar os inimigos para o inferno. Rompemos por meios dos arbustos chamuscados e o cheiro a pólvora intoxica, mas os ânimos não esmorecem. Os primeiros a atingir os pontos altos, numa acção combinada entre dois pelotões, lançam granadas ofensivas para dentro das cavernas e nas escarpas mais suspeitas de abrigarem inimigos. E dos turras não há resposta! Tudo num sossego sepulcral.

Meia hora depois de iniciado o assalto, passam dois aviões T6 a baixa altitude, o que perturba a acção das nossas tropas. No longe da planície ouvem-se alguns tiros dos guerrilheiros que escaparam às bombas do ataque que a brutalidade da guerra obrigou a fazer e vão a caminho do norte. Em contacto rádio com os dois aviões, foram dadas as coordenadas para um possível bombardeamento aéreo contra os fugitivos. É importante que não escape nenhum, porque nesta zona e no itinerário para Quibaxe, há ataques semanais que causam baixas nas nossas tropas e destruição de viaturas militares e civis.

Vasculharam-se todos os sítios onde pudessem estar guerrilheiros da UPA, mas apenas meia dúzia de armas ligeiras e um morteiro de 81mm foram encontrados… os corpos feitos em pedaços ficaram à míngua das hienas e dos mabecos. Para alguns, só interessaram as carapinhas!

 

Úcua, Abril de 1962

Joaquim Coelho

 

 

 



 

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