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micaias

Memórias do Dia da Mãe, em tempo de guerra

Avatar do autor Jota.Coelho, 07.05.23

Em Homenagem a todas as Mães do mundo

Porque o Dia da Mãe merece ser festejado com todo o Amor que devemos às nossas Mães, aqui deixo algumas memórias que jamais esquecerei.

A longa caminhada da vida, nos tempos de crescimento, formação, guerras, trabalho e viagens com diversas finalidades, perrmitiu conhecer outros povos, diferentes formas de vida, sociedades mais ou menos desenvolvidas, sempre na perspectiva de colher amplos conhecimentos para o melhor desempenho e partilha comunitária, em prol de um mundo mais solidário com gente feliz.

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Pequeno apontamento do Iníco da complicada vida Militar:

- Primeiro Capítulo do livro "O Despertar dos Combatentes"  publlicado pela Clássica Editora - onde consta carta enviada a minha Mãe:

                DO PARAÍSO AO INFERNO...

         Serão os sonhos determinantes na vida dos seres humanos? Alguns sonhos podem ser uma espécie de luz que alumia os caminhos mais sinuosos, mesmo quando a claridade de cada dia parece escapar às turbulências dos tempos desta vida. 

Na rotina da paradisíaca Granja do Marquês, nas planícies de Sintra, o Joaquim Sousa dá os últimos retoques nos paramentos do Tenente-capelão Figueiredo, antes de agarrar as cordas dos sinos que alertam a vizinhança da Base Aérea 1 para o dever dominical. A missa começa às nove horas em ponto e a capela apresenta-se cheia, nas vésperas do Natal de 1960. No final da missa, enquanto o ajudante arruma as galhetas do vinho e da água, o padre deixa transparecer a sua inquietação sobre o futuro das terras ultramarinas: “Sabes, Joaquim, o dr. Vasco Garin já não conseguiu demover as Nações Unidas de aprovarem uma resolução anti-colonialista que impõe a Portugal o reconhecimento da autonomia aos territórios ultramarinos. E tudo indica que Portugal perdeu o apoio dos países da Europa considerados amigos, porque votaram a favor dessa resolução, o que supõe a sua hostilidade à política portuguesa actual.”

O  Joaquim Sousa sente-se confuso com as palavras do capelão, e tenta perceber o efeito da “resolução anti-colonialista”, perguntando:

- Será que a tropa vai sofrer algumas consequências, senhor capelão?

- Meu rapaz, conforme as coisas estão a evoluir, não tarda muito a estarmos todos envolvidos.

Deixando transparecer um sorriso, o capelão deu conta de que as caixas de vinho destinado à consagração nas missas estavam a diminuir a olhos vistos. Pudera! As tardes de sossego, em companhia dos faxinas da messe de oficiais, têm proporcionado bons lanches de pão com bife, regados com o licoroso vinho oferecido pelas casas de vinho do Porto. Durante quatro semanas a substituir o sacristão deram para baixar os lotes de caixas armazenadas na arrecadação da capela!

O Sousa fica a matutar nas consequências da “resolução”: “Agora que iniciei a especialidade de “circulação aérea” e subi no nível da qualidade do rancho é que a política internacional faz abanar o Governo?”

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A alvorada do dia 23 de Janeiro de 1961 deixa uma onda de inquietação em todos os militares da Base. Com algum nervosismo, os chefes determinam a proibição de saídas do aquartelamento, porque está tudo em prevenção. As patrulhas armadas posicionam-se nos pontos estratégicos, duas baterias anti-aéreas são colocadas junto à placa de estacionamento dos aviões de instrução, as metralhadoras pesadas, camufladas atrás da torre de controlo, apontam para a pista principal; os mais antigos dizem nunca ter visto tanto aparato e os comentários nada esclarecem.

Pelas 10 horas, dois cabos das transmissões em criptografia passam pela sala dos alunos pilotos e deixam a informação de que o paquete Santa Maria foi assaltado por gente comandada pelo capitão Henrique Galvão. A notícia espalha-se pela torre de controlo, chegando aos bombeiros e às camaratas. Dias mais tarde, sente-se uma preocupação crescente por causa do pessoal que compõe o pelotão da Polícia Aérea que embarcou para Angola, a fim de dar segurança às obras de construção da Base Aérea do Negage, gente que todos conhecem. A notícia de que o paquete com os “revoltosos” se dirige para Angola não agrada a ninguém. O Vizela pede ao sargento Fernandes que o nomeie para a secção de extintores portáteis, para poder ter fins-de-semana livres. É aí que reúne os amigos fandangueiros, para falar da situação política e militar. As primeiras medidas tomadas pelo presidente John Kennedy sobre África são de apoio à autodeterminação dos territórios portugueses do Ultramar. O aluno piloto Malaquias de Oliveira deixa transparecer alguma inquietação, prevendo que o curso não vai servir só para alargar os horizontes do Minho ao Algarve e ingressar na aviação civil, mas pode passar pelas terras de África. O espectro da guerra começa a condicionar os sonhos do pessoal que escolheu as proveitosas especialidades da Força Aérea para conseguir um futuro mais risonho na vida civil (em 1966, este piloto foi destacado para a guerra em Moçambique, onde o seu avião T6 foi abatido por anti-aéreas da Frelimo, que lhe causaram a morte na zona de Marrupa-Révia).       

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Os aviões Harvard T-6 continuam a levantar voo com os jovens alunos que um dia sonharam confundir-se com os pássaros; são mais de vinte a levantar voo em cada parte do dia, de manhã e de tarde. Os mais determinados saem do perímetro de treino, configurado pelo triângulo entre Mem Martins, Peniche e Praia das Maçãs, e vão mostrar habilidades aos seus conterrâneos ou lançar cartas de amor às namoradas, fazendo acrobacias que lhes estão interditas e abusando da lei da gravidade. Por diversos percalços, nem sempre regressam à base. Os controladores, instalados na torre que domina a planície da Granja do Marquês, tudo registam - quedas por avaria ou por falta de combustível - e anotam as peripécias dos desastrados candidatos a aviadores! Mas também os casos insólitos ficam gravados na memória dos componentes da guarnição, como o que foi denunciado por um telefonema que alertou a torre para o “furacão” que passou sobre a esplanada da Praia das Maçãs, espatifando cadeiras e mesas. Identificado como sendo o avião 1723, pilotado pelo cabo-instrutor Barbosa, logo o comandante, coronel piloto aviador António de Oliveira, ordenou ao oficial de dia que recebesse o “herói” com honras de prevaricador e o metesse na “casa da rata”. Privado da liberdade dos pássaros, que via através das grades, e suspenso de voar, teve tempo para perceber que aquela não foi a maneira correcta para convencer o pai da Nelinha (que ele ama com todas as forças) a mudar de ideias e autorizar o namoro!  

          Ontem, pelas três da tarde, a perícia do sargento-instrutor Adalberto fez planar o avião T6 Harvard, com o motor pifado, desde Pêro Pinheiro até à margem da ribeira que passa ao fundo da pista sul... ficando do outro lado, com as asas partidas e soltas da carlinga que se incendiou. Foi rápida a intervenção dos bombeiros, cujo carro, correndo pela pista em direcção ao desastre, afocinha dentro da ribeira, obrigando à utilização dos extintores portáteis para socorrer os dois ocupantes (instrutor e aluo). Nem todos os extintores funcionaram correctamente, o que implica um processo de averiguações ao azarado Vizela. O major Cerqueira, mais conhecido pelo major “colhões”, instrutor da Isabelinha Bandeira, filha dos condes de Rilvas, manda arquivar o processo por não terem sido apuradas culpas.

Depois de momentos de aflição, os controladores riem às gargalhadas! Na iminência de um grave acidente, lançaram o very-light salvador; o piloto, que se preparava para aterrar em cima de outro avião que ainda rolava na pista, acelera para borregar e vê a carcaça cair e rodar sobre a asa direita, saindo da pista, enquanto o motor percorre mais de cem metros aos trambolhões! Calmamente, o piloto sai da carlinga e vai ver o estado em que ficou o motor. A gargalhada é inevitável.   

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Ao cair da noite de sexta-feira, para manter os hábitos da roubalheira, o sargento Gabino incumbe o cabo-mecânico Alcides, um matulão de Montalegre, de empurrar pela pista abaixo, até à estrada, o bidão de duzentos litros de gasolina escondido debaixo das ervas da valeta. Em tão má hora o fez que o rapaz foi detido pela guarda da Base e metido na “casa da rata”. Foi o maior azar que algum especialista poderia ter; punido com dez dias de prisão, desencanta-se com a vida e entra no mundo do crime. Em poucas semanas, passa de lorpa a angariador de prostitutas que contrata em Lisboa, aos fins-de-semana, fazendo-as entrar no hangar onde uma cama improvisada serve para consolar os amigos que pagam a respectiva taxa de uso. A meio da tarde, passa pelas camaratas a apregoar a chegada das meninas: 

- Eh, pessoal, quem quer “foderi”? São duas gajas boas como milho.

Aquele modo de vida tem curta duração, porque um “oficial de dia” mais atento descobre a marosca e enrola o rapaz numa folha de papel com 25 linhas. Chegado ao comandante, este determina a nomeação do cabo Alcides para Angola, como castigo. Antes do embarque, arranja maneira de legalizar uma das miúdas como sua esposa, com direito a transporte por conta da tropa. Soube-se, mais tarde, que o negócio corre de vento em popa nas terras africanas! Segundo a filosofia de Stendhal, “qualquer bom raciocínio é ofensivo”: porque o raciocínio pode descobrir o mal que dá prazer, sendo por isso que a natureza do ser humano gosta de viver com um pouco de ignorância reconhecida... Será por isso que há burros espertos?

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O Sousa sente-se confuso com os estranhos sonhos que lhe tolhem o sono. Nas últimas noites, só vê paisagens africanas, com selva por todos os lados e muitos elefantes rodeados de leões famintos. A noite passada, teve outro sonho, muito mais realista, e escreve à mãe, dando-lhe conta da inquietação:

“Minha Mãe, tive um sonho que me perturba o pensamento quanto ao futuro!

Estava um frio cristalino, quando passei pela Baixa de Lisboa e vi muitos mendigos de olhar baço a estender a mão e nem a santa madre igreja lhes dava abrigo na velha Sé Catedral.

Entrei num barco velho, acostado na Gare de Alcântara; no tombadilho escorregadio, andavam umas velhas a limpar os excrementos que as gaivotas cagaram para a guarnição de S. Bento. O timoneiro limpava o leme ao fato acolchoado do homem que brandia a cruz em direcção ao céu. Bem agarrado ao leme, o timoneiro, que foi lente em Coimbra, arregalava os olhos na direcção do sul e cochichava ao ouvido do homem do crucifixo; mas o céu não respondia e ele sorria, sorria... com a cruz dependurada ao peito. Impaciente e temeroso, eu queria voltar para terra e limpar a neblina dos olhos... tomar a vida pela mão e sonhar. Mas o barco, atulhado de morcegos e beatas, perdeu-se no mar e o homem rude, de nariz alongado, deixou cair os olhos sobre as águas, dizendo: «Portugal d’aquém e d’além mar está comigo». Senti um solavanco na carcaça e o barco estava a adornar... Lancei-me à água e nadei, nadei, até me sentir flutuar no tempo, sem nunca mais encontrar o cais. Já muito longe de Lisboa, vi duas ilhas ancoradas! Seriam ilhas? São Tomé e Príncipe? O calor asfixiava naquela paisagem paradisíaca, onde dois homens, calmos como a maresia, pescavam à sombra dos coqueiros que se atiravam para o céu! Ajudaram-me a levantar e comecei a ver com mais claridade: muitos soldados assustados, passavam pelo aeroporto, embarcados na ilusão duma pátria longínqua; meus irmãos desprevenidos e acorrentados às ruínas do império que espera as malfadadas espingardas que uns tipos destemidos lhes tinham prometido. Perdi o pensamento no preciso momento em que chegou o homem do leme, o da cruz vinha atrás –, mandou servir um refresco que me soube a fel; mandou fechar todas as saídas, para o homem da cruz converter os soldados: «Ides combater os infiéis que mataram inocentes polícias!» Todos ficaram a tremer, quando o homem do leme mandou embarcar o povo sob o seu comando. Mal vi uma fresta de luz e comecei a pensar, levei uma pancada na cabeça que me causou arrepios... Era o homem de fato acolchoado a bater com a cruz! Percebi que só os motores podiam falar... o avião seguiu rumo a Luanda, onde encontrei vultos a correr, pareciam macacos; em vez dos elefantes, vi os massacres que deixaram os mortos a ornamentar as ruas, onde as crianças, chorosas, agonizavam, ensanguentadas no sangue dos pais. Um estremecimento arrepiante!... Acordei num sítio com silêncio... tinha o pescoço dorido!

Deste seu filho militar, que suplica preces aos deuses da paz e da concórdia. Acordei na Granja do Marquês, onde os aviões barulhentos nos preparam para a guerra.” 

Com a chegada do pessoal que vem de Lisboa, nota-se um ar sombrio, mesmo de inquietação. Os murmúrios começam a espalhar-se pelas salas dos pilotos, nas oficinas e na torre de controlo: “Os jornais de Lisboa trazem notícias alarmantes do terror em Angola!” “Consta que são aos milhares os corpos barbaramente mutilados pelos terroristas”. A notícia espalha-se por todos os lados, causando alarme entre o pessoal mais antigo.

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Ninguém quer acreditar no que está publicado na Ordem de Serviço: “Todos os militares com menos de 18 meses de serviço devem apresentar-se na Secretaria das respectivas esquadras, durante esta semana”. Os especialistas mal classificados nos cursos e outros militares do serviço geral devem preparar-se para embarcar com destino à Base Aérea 3, a fim de frequentar um estágio de Polícia Aérea com a duração de três semanas! O desânimo é geral, sem ninguém perceber o alcance de tal determinação. São várias dezenas de inconformados com a situação, cada um a pensar no futuro empenhado. Polícia Aérea! Três semanas de preparação para a guerra? Por entre olhares sisudos e palavras balbuciadas a conta-gotas, vai-se espalhando a notícia de que grande parte dos componentes do pelotão de Polícia Aérea que defendia a Base do Negage foi aniquilada pelos terroristas. “Mas que fim tão inglório”, dizem alguns; “que azar do caraças”, dizem outros.

Entre embarcar, com grandes probabilidades de ser esquartejado, ou desertar, abandonando o futuro e uma vida normal, é uma escolha muito complicada para o Sousa. Mesmo sabendo que jurou defender a pátria e a bandeira, não vê esse compromisso estender-se para além da Lusitânia; no entanto, entende que desertar é um acto de cobardia e de abandono dos portugueses que estão sendo massacrados.

          Passando por um percurso cheio de peripécias, o Sousa chega a Luanda com vontade de ajudar a combater as hordas de selvagens terroristas que estriparam e esquartejaram inocentes no Norte de Angola. Preparado na dura instrução de caçador pára-quedista, embarca no avião da noite, sem ter ninguém a dizer adeus, sem se despedir dos familiares e dos amigos. Cultiva a ideia de que as lamechices só servem para esmorecer a vontade de vencer! Meses depois, enviou uma mensagem para o “Notícias de Penafiel”:

Neste momento de dúvida e de tristeza, sinto a nostalgia da ausência que me dá saudade. Vou abandonar a mãe-Pátria e partir para a nossa querida província de Angola. Apodera-se de mim o desejo de abraçar todos os entes queridos, os grandes amigos e colegas. Estou sensibilizado, mas não desejo ser herói nem famoso, não pretendo conquistar o que quer que seja. Sou chamado a defender a Pátria, a manter a soberania portuguesa. Parto confiado na protecção omnipotente. Será sempre essa a minha defesa, o meu refúgio. Agora que me afasto de vós, pedi a Deus que eu não tarde a voltar. É meu dever; por isso vou com a fronte erguida.”

       APRESENTAÇÃO

 

Parti às seis da tarde do aeroporto,

    sem ninguém a dizer adeus.

Com os anjos voei no azul dos céus,

    com vontade de continuar vivo,

porque ao destino nunca me esquivo...

 

     sem olhar p’ra outra banda

desembarquei na pista de Luanda,

onde encontrei a ausência do sabor

e a pobreza das vidas sem amor!

 

Caminhei embrulhado no destino

    e fui condenado ao silêncio...

A importância de nascer menino

esvai-se em cada hora de combate,

mesmo que os sinos toquem a rebate! 

 

Já ouço o estrondo dos canhões

    vomitando fogo nesta terra...

pela tarde regressam os aviões

com os mortos vitimados na guerra

     onde uma mina obscura

nos causa grande amargura.

 

Ainda espero uma carta secreta

que me deixe a porta aberta...

pois não sei se outros saberão

porque se morre a bem da Nação! 

 

           Luanda, 1961

           Joaquim Coelho

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