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micaias

A Vida no mato, de José Monteiro

Avatar do autor Jota.Coelho, 09.10.20

Um Combatente nas Picadas de Cabo Delgado

Nunca possui uma forte compleição física, era alto e magro, no entanto tinha uma vontade enorme de nunca desistir, e nesse aspecto era forte psicologicamente. Já na recruta, em Tavira, nas marchas finais de Sexta-feira, nunca desisti e nunca me deixei ficar para trás o suficiente para poder perder o meu fim-de-semana.

                Em Mueda, sempre que saia da picada e entrava no mato, era um grande alivio, pois as emboscadas, as minas ou os fornilhos tinham ficado para trás, no entanto era ali na mata que havia o grande desgaste físico.

                Em campo aberto, e na chamada bicha de pirilau, a progressão tinha que ser rápida e a distância entre camaradas tinha que ser maior por questão de segurança.

                Aproxima-se mais uma operação, e esta ao nivel de batalhão. Dois grupos de combate da minha companhia, mais dois de outra companhia do mesmo batalhão.

                Mais de oitenta homens saem da picada, deixados pelo esquadrão de cavalaria, e entram no capim seco, pois está a aproximar-se a época das queimadas, algum tempo depois entramos na zona de mata aberta. Aqui, como tinhamos alguma protecção natural, aproveitamos para um caminhar rápido e sem parar até ao almoço.

                Nestas operações de 4/5 dias tinha que haver uma grande capacidade para racionar os comestiveis e especialmente ter cuidado com o consumo dos dois cantis de água. Por mim sempre fui bastante cauteloso com a água, nunca enchi cantis em charcos e quando os enchia em riachos ou rios sempre esperei pelos efeitos dos comprimidos. Foi sempre assunto de conversa entre mim e os camaradas da minha secção, uns aceitavam e compreendiam,  felizmente a maioria, outros não aguentavam e então era cantil cheio, cantil bebido, quando me apanhavam noutra função,

                Depois de uma refeição rápida, continuamos a nossa caminhada, onde já perto do fim da tarde, encontrámos um trilho. Toda a coluna parou, pois era sinónimo de presença de guerrilheiros ou população que os apoiava. Decidimos pernoitar ali mesmo, ficando o trilho cortado em dois lados pela nossa habitual circunferência. A noite ia caindo e ficou decidido, em cada grupo de combate, os respectivos turnos de alerta. Por mim, como raramente dormia, fui dando volta ao enorme círculo, para passar o tempo, e confirmar se havia pessoal que não deveria estar a dormir. Começou por se deixar de ouvir as pequenas aves, que com o cair da noite se calaram e comecei a ouvir autenticos choros de criança. Base dos guerrilheiros pensei que não fosse, pois estavamos no final do nosso primeiro dia e tão perto de Mueda não acreditaria, mas podia haver por perto alguma machamba e alguém da população por ali a dormitar.

                Novo dia nasceu com o pequeno ruido de todos a acordar e a tomar o pequeno almoço. Troquei impressões com os dois alferes da minha companhia, que ouviram o mesmo som, e a rir comunicaram-me que os guias lhe tinham dito que eram os sons emitidos pelas hienas, que eram frequentes nesta zona do Vale.

                Novamente em marcha, na formação de bicha de pirilau. Com os avançar das horas o sol começa a incomodar e o cantil começa a ser levado á boca mais vezes. Apanhamos uma zona de pequenas elevações, mais parecia um carrossel.

                O sol, bastante intenso, o caminhar e a irregularidade do terreno começam a provocar bastante cansaço físico. A G3 já não tem posição de estar, os quatro carregadores mais as munições extras parecem que pesam o dobro. A atenção devida e a disciplina tática começam a baixar. Finalmente o fim do dia aparece e preparamo-nos para pernoitar. Foi um autêntico alívio poder finalmente descansar. Com o avançar da noite, aparece o som das hienas e ouviamos perfeitamente o ruido dos motores das viaturas no aquartelamento de Mueda..

                Estamos no terceiro dia de mato, preparamos o pequeno almoço. Tenho que ter muito cuidado com a água, pois apenas tenho um cantil cheio. Aí vamos nós, novamente com energias renovadas, preparando-nos para entrar no objectivo, uma base da Frelimo. Depois de uma caminhada em mata aberta, encontramos um trilho e caminhamos paralelamente a ele. É altura de uma pequena paragem para almoço. Aviso a minha secção que ainda faltavam dois   dias para o regresso e que só teríamos água no pequeno riacho antes da zona das bananeiras. Nesta altura já havia muitos cantis com pouca água. O capitão da outra companhia, aliás o único que foi nessa operação, quis comprar

um cantil ao meu camarada e amigo Marcelino, que prontamente recusou. O Marcelino foi, e continua, caçador e estava bastante habituado a controlar a água, inclusivamente era o único que todas as manhãs lavava os dentes, com escova e pasta, com a água do cantil. Hoje, nas nossas reuniões anuais falamos deste assunto.

                Depois do almoço rápido continuamos o nosso caminho paralelo ao trilho, quando aparece a DO do Major de operações a querer que nos posicionassemos na sua vertical. Logo de seguida ouvimos uma algazarra "tropa ué, tropa ué" seguido de alguns disparos ao longe. Como era evidente, os Frelos viram o avião e logo pensaram que também

havia tropa por perto. Não tivemos alternativa, mandámos umas morteiradas, a algazarra e os fogachos dos Frelos acabaram, tal como a operação. Não podíamos arriscar uma possível emboscada antes de chegarmos á base deles.

                Novamente a caminhar, desta vez em direcção á mata serrada, com progressão á catanada, pois ali estávamos mais seguros. Pernoitamos por ali, não deu para fazer o círculo por causa do terreno, mas os grupos de combate agruparam-se mais.

                Novo dia, este já a pensar no quartel. Comunicou-se com Mueda o reencontro com o esquadrão de cavalaria, um pouco antes da ponte no sentido Nancatare/ Mueda, já muito perto das águas.

                Quando saímos da mata para a picada, lá estava o esquadrão para nos levar, finalmente, para o quartel.

    Aqui chegados, por mim, passei, como era hábito, pela messe para limpar o "pó" por dentro com uma cervejola fresca, seguindo-se um banho, Maconde ou não, e uma cama lavadinha.

                Passados quase 50 anos, há muitos pormenores que me vão escapando, no entanto o Vale de Miteda, as noites no mato, a progressão e as entradas nas bases, na grande generalidade ainda bem me recordo. São   marcas que ficaram para sempre. Não falando nos camaradas que por lá ficaram para sempre, pois essas são marcas bem vincadas ao pormenor que jamais esquecerão.

Texto de José Monteiro em:   https://www.facebook.com/groups/picadascabodelgado/permalink/3726330090712691/

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