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À BOLEIA para ENTREVISTAR MERCENÁRIOS
Antes de partir da Beira para as matas de Cabo Delgado, ataviei uma entrevista com uns mercenários americanos que estão em Salisbury ao serviço do Iam Smit. Pertenceram à tropa especial que combate nas selvas do Vietname. Esse encontro foi-me facultado por dois pilotos de caças da Força Aérea Rodesiana que estacionavam na Base Aérea 10, da Beira, com vista ao reforça das tropas portuguesas que pretendiam evitar o desembarque das tropas inglesas embarcadas nos navios de guerra que pairavam ao largo do porto da Beira, durante a “guerra do petróleo”. Nas duas vezes que conversei com esses pilotos, acerca dos mercenários que o presidente rebelde da Rodésia do Sul, Iam Smith, estava a contratar para resistir ao cerco das tropas britânicas, fiquei com a convicção de que não aceitam de bom grado a presença de mercenários americanos, por os considerarem uns “corrécios”.
Cumpridos os trinta e um dias de missões entre Macomia, Chai, margens do rio Messalo e Serra do Mapé, regresso a Porto Amélia, onde o pessoal da companhia esperava uns dias pelo transporte em aviões Nordatlas, até à base da Beira. Mantinha a ideia da entrevista com os ditos mercenários, condecorados na guerra do Vietname, sobre a qual preparava um artigo para um jornal a publicar na cidade da Beira, porque era uma novidade em termos de combatentes estrangeiros pela causa Rodesiana.
Só que o tempo me é escasso e mais de dois dias em Porto Amélia pode mandar o meu plano às favas. E não há previsões da chegada de qualquer avião que possa transportar a minha tropa. Para animar o pessoal da companhia, pus em prática os meus conhecimentos de “cozinheiro” adquiridos no tempo em que fui escuteiro, pedi autorização para levar um jeep até à doca de Porto Amélia, onde comprei uma boa quantidade de peixe e preparei uma saborosa caldeirada. Toda a gente tirou a barriga de misérias, incluindo os senhores oficiais. Aproveitando o repasto, pedi ao comandante da companhia a necessária autorização para tentar arranjar boleia nos aviões que passavam pelo aeroporto local. A minha pretensão foi bem aceite e recebi a respectiva guia de marcha para viajar por minha conta e risco.
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A espera foi de poucas horas na gare do aeroporto e uma luz de esperança surgiu do céu em forma de avião Dakota. Enquanto os sargentos e cabos da Força Aérea descarregavam algumas caixas de material, aproximei-me do capitão de cabelos grisalhos, que me pareceu ser o comandante do dito aparelho, a quem me apresentei a solicitar a boleia que tanto esperava para a Beira. O homem não deu muita importância ao meu pedido, mas foi dizendo que sempre ia viajar até Nampula (que tinha ligação para a Beira) e, em tom irónico e gozão, disse que até gostava de dar boleia, portanto que embarcasse e me acomodasse dentro da carlinga. Não hesitei. Apesar de ver o espaço bastante ocupado com caixas de material, nem percebi que aquela carga só poderia destinar-se às bases e acampamentos do norte.
Ainda o avião não tinha atingido a altitude de voo de cruzeiro e já eu estava a ver o meu tempo a andar para trás. Pois, não demorou meia hora para avistar a picada de Macomia para Mucojo; e, mais uns minutos de viagem, passámos os charcos do rio Messalo, nas proximidades do Chai. Incrédulo e confuso com aquele desvio, dirigi-me à cabine de pilotagem, mas ao passar junto do operador de rádio logo este informou que tinham como destino Mocimboa do Rovuma e outros destacamentos de tropa lá pelo Norte. Embora percebesse que o capitão era daqueles pilotos bem tarimbados, que gostam de pregar as suas partiditas, tive o arrojo de perguntar qual era a previsão de chegar a Nampula. Olhou-me com um sorriso e respondeu calmamente: “Deveremos chegar a Nampula antes da meia-noite… de amanhã.” Não fora o meu compromisso de arrancar para a Rodésia, até aceitava!
No percurso a baixa altitude, vi alguns acampamentos dos guerrilheiros, antes de aterrar em Mocimboa do Rovuma. Dali fomos para Nangade, onde descarregaram mais umas tantas caixas de munições, outras com latas de cerveja 2M e poucas rações de combate. Enquanto a tripulação do Dakota fazia o seu trabalho, aterrou um avião T6, que me iluminou da escuridão que aquele capitão de cabelos grisalhos trouxe aos meus objectivos.
Estando o sol a querer banhar-se lá para os lados do lago Nangade, tinha ali outra alternativa. Nem mais nem menos do que o tenente-piloto Malaquias de Oliveira, meu companheiro na Base Aérea 1, de Sintra, uns anos atrás. Falou com um alferes da Companhia de Cavalaria…. Para reabastecerem o avião, e lá estiveram dois soldados a dar à bomba para transferir o combustível do bidão até ao depósito da pequena aeronave. Em poucos minutos já voávamos para sul a caminho de Nampula. Não fora a barulheira do potente motor, poderíamos ter falado dos tempos em que os aviões de treino da Granja do Marques, serviam para lançar cartas às namoradas que o pessoal tinha espalhadas nas terras de Mem-Martins, Pêro Pinheiro ou mesmo nas Mercês. Com a pista de Nampula bem iluminada, a aterragem foi perfeita. Passei a noite na messe, sofrendo os efeitos do calor que se fazia sentir na região.
De manhãzinha, avanço para a pista de Nampula, sempre convicto de que algum avião seguiria para a Beira. Já o sol crestava e obrigava a serenar a sede no bar do aeródromo, quando chegou um avião Nordatlas, para onde me dirigi com outros militares e alguns civis. Falando com o tenente-piloto comandante da aeronave, autorizou o embarque, passando por Nacala. Aterrou em Nacala, fazendo uma aterragem quase a pique, como o faziam nas pistas da zona de guerra, evitando assim serem perfurados pelas balas dos guerrilheiros que se instalavam nas proximidades da zona de aterragem. O embate do trem de aterragem foi violento e não fora a largura e extensão da pista, algo de grave poderia ter acontecido. Rodaram até junto do hangar, onde passaram uma vistoria ao trem. Eu nem queria acreditar no que via: as molas do lado direito do trem da frente estavam abatidas! E agora, Coelho?
Não havia comentários. Todos se olhavam desolados e descrentes da continuação da viagem. Em conversa com o Cabo mecânico Ferreira, fiquei a saber que tinham ali complicação para alguns dias. Hipótese de outro avião para esse dia, nem pensar. Peço ao comandante do destacamento local uma viatura que me levasse à estação dos caminhos-de-ferro de Nacala. O comboio que estava para sair era pardo de tanto lixo acumulado; mas não era caso para desistir. E lá tomou a marcha, lento, lento… rumo a Nampula. Com a tarde a mais de meio, chegou outro Nordatlas, com destino à Beira. Abeirei-me e pedi permissão para embarcar. Estes pilotos são uma malta porreira. Repeti o pedido e fui autorizado a entrar e tudo correu dentro das conformidades até à pista da Beira. Estava prestes a cumprir os prazos combinados para a reportagem aos mercenários da Rodésia.
Com tantos pilotos de táxis aéreos a trabalhar para os comerciantes monhés, depositei neles a minha esperança do desenrasca para chegar a Salisbury, capital da Rodésia do Sul. A meio da manhã, tomei boleia no Cessna do piloto Palmeiras, que faz estas viagens todos os dias. Homem desenrascado, transportava duas grandes malas do comerciante paquistanês que caminhava na sua frente, quando me viu e aceitou o pedido de boleia. Embarquei rapidamente naquele pássaro habituado aos climas tropicais. Partimos num longo voo para oeste perseguindo a rota do sol que serve de guia sobre a imensa floresta verde entremeada com montanhas rochosas e escarpadas. Os sons do motor misturam-se com as cantilenas do Palmeiras, que me apontava as rectas da estrada que passa de Moçambique até ao centro da África.
Atrai-me o fascínio do desconhecido! É-me particularmente gratificante percorrer distâncias imensas dentro destes pequenos pássaros de asas de cores berrantes como a floresta que se avista lá em baixo, quando o sol nos confunde o horizonte e acabamos por aterrar numa pista nas proximidades duma montanha a norte de Salisbury. Foi um desvio de rota inesperado, mas emocionante, sem acidentes! Já estávamos em território do primeiro-ministro Iam Smith, sem vontade de sermos incomodados pelos seus guardas. Acidentalmente, e por conveniência minha, os ventos do tufão tanto abanaram a carcaça do avião, que o piloto perdeu o azimute e fomos aterrar numa pequena pista periférica à povoação do interior da Rodésia, muito perto de Bindura, a pouco mais de 50 quilómetros de Salisbury. Há que tomar alguns cuidados, enquanto o piloto entra em contacto com a torre de Lourenço Marques e tenta corrigir a rota para o regresso, porque o combustível do Cessna não permite grandes desvios e o meu amigo Palmeiras, que conheço desde quando era aluno em Sintra, está bastante nervoso. É a terceira vez que viajo de boleia com o Palmeiras; depois que saiu da Força Aérea, tenho-me cruzado com ele pelas pistas de Nampula, Porta Amélia e Nacala; homem com uma invulgar calma, percorre grandes distâncias em rotas sinuosas sobre estas florestas africanas. Tem sido bem sucedido como taxista aéreo.
Agora que o Palmeiras já tem o azimute para seguir até Inhambane, eu vou continuar o meu caminho para Salisbury onde me esperam dois ou três gringos americanos, mercenários e ex-combatentes na guerra do Vietname, com quem marquei uma entrevista, bastante importante para a minha pesquisa sobre a mentalidade dos combatentes activos. Sei que é uma causa perigosa, porque estes homens, ao que me foi dito, vendem a estabilidade dos dolares por uma oportunidade de confronto para matar legalmente!
Na pequena cidade de montanha, não foi difícil contratar uma pik-up com condutor para me levar ao endereço da residencial Paskir (é uma pensão com cervejaria e esplanada). Os rands sul-africanos foram bem aceites como pagamento e partimos pela estrada que desce da montanha de extensos rochedos até à capital. De caminho ornamentado de zonas verdes e savanas mais rapadas, cruzámos o planalto desértico até às fazendas dos agricultores que fornecem alimentos aos mais de quinhentos mil habitantes de Salisbury. Antes de entrar na cidade, contornámos a zona industrial bastante poluída pelas fábricas siderúrgicas.
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Cheguei pelas quatro da tarde. Mal sai da viatura, com as máquinas de filmar e fotografar a tiracolo, avistei dois trogloditas sentados junto à esquina da casa e logo outro se aproximou de espingarda com a bandoleira no ombro direito e cano descaído ao longo das costas; não deram importância à minha presença, enquanto dois conversavam o outro lia uma revista. Fiquei no passeio em frente a observar o ambiente da rua e o movimento na esplanada. Fui-me aproximando, na incerteza de serem os meus entrevistados, e entabulamos conversa. Eu tinha um gravador de fita magnética, que quis pôr a funcionar, mas não autorizaram gravações; que sim, iam falar, mas só poderia tomar notas. Quanto a fotografias, nada de nada! Começo a ver goradas as minhas pretensões, depois da viagem atribulada. Trocámos uns pequenos mas significativos presentes: ofereceram-me emblemas das unidades de elite a que pertenciam, e, em troca, ofereci-lhes dois brevets dos pára-quedistas. Fomos conversando, fui anotando, bebendo e apreciando os entrevistados. Comportaram-se com uma impetuosidade agressiva que chegava a ultrapassar o irracional das intrigas internacionais. Fico com a ideia de que eles têm medo das guerras, e até têm medo de andar na rua, no meio de pessoas pacíficas!
Quando lhes perguntei porque andavam armados, quiseram vincar a sua razão apontando a arma a um grupo de negros que se deslocavam no passeio, dizendo que a uma gatilhada os brancos se livravam de meia dúzia de potenciais inimigos de uma vez só; que o estatuto que tinham estabelecido com as autoridades lhes permitia transportar as próprias armas sempre que o quisessem! Constatei que são homens desprovidos de carácter, para quem só conta o dinheiro e o confronto.
Durante a entrevista que me concederam, a pedido de um dos pilotos dos caças que vieram para a Beira, percebi a sua má formação cívica, com desprezo pelos princípios da ética militar; (quanto não vale um estatuto de mercenário, mesmo com medo da guerra). Estando as coisas neste ponto, o meu comprometimento com o imprevisto, mesmo nas situações mais insólitas, começa a perder o interesse. As minhas dúvidas foram dissipadas antes de terminar a entrevista, porque um dos mercenários quis vincar a sua “valentia” duma maneira trágica: colocou a espingarda em cima da mesa da esplanada onde conversávamos e disparou de rajada contra um grupo de transeuntes negros que subiam a rua na nossa direcção. Sem qualquer motivo que não fosse o ódio aos pretos e a má formação da personalidade, disparou por entre os dois comparsas e atingiu cinco pessoas, tendo duas sucumbido às balas e ficaram caídas no asfalto, enquanto outras fugiram aos gritos pela rua abaixo. Até os brancos que estavam na esplanada condenaram o acto, mas com alguma moderação, talvez com medo das represálias dos “mercenários”. Outros bateram palmas! Fiquei surpreso com o gesto, mas os comparsas riam de alma aberta. A minha estupefacção aumentou quando percebi que ninguém se levantou para socorrer os feridos que gemiam e sangravam a escassos metros de distância da esplanada onde fui ameaçado com a mesma arma por ter tentado fotografar a ocorrência.
A chegada das viaturas da polícia não perturbou os três mercenários que recusaram qualquer comentário ao episódio. A entrevista acabou ali, sem que eu percebesse as razões do gesto tresloucado daquele meliante marcado pela guerra do Vietname. Curiosamente, até me disseram que, na guerra deles, os helicópteros levaram bifes para comerem ao mata-bicho, que fumavam “ervas da felicidade”, que tinham maningue de gajas nos abrigos e também alguns oficiais sul vietnamitas rabichos. Como não foram interpelados pela polícia rodesiana, os tipos achavam-se os autênticos “vingadores” do centro de Salisbury.
Guerra do Vietnam
Não houve despedidas, porque nada me prende a esta filosofia de guerra, onde a ganância e a brutalidade não têm limites. Ainda deu para perceber que as autoridades rodesianas têm mais uma razão para duvidar da “valentia” dos mercenários e, em consequência, mais um problema de segurança para resolver.
Tenho consciência de que a busca da verdade é o melhor incentivo que posso transmitir àqueles que acreditam na divulgação da cultura como arma contra a repressão e as liberdades. Desde hoje, deixei de ser um admirador do Iam Smith! Episódios como este acabam por minar a confiança dos povos e tudo vai piorando, porque já não há esperança.
Naturalmente que não estou só, mas a guerra que nos horroriza e desgosta também nos dá algumas pistas para entender as razões porque o ocidente português está a perder a credibilidade como estado nação que deu novos mundos ao mundo.
Os povos que os antepassados subjugaram e evangelizaram jamais perderão as raízes da sua cultura nativa e da sua alma africana. Então porque não entendemos a suas pretensões de emancipação? Se não soubermos aproveitar agora, quando temos em Salisbury um governo rebelde mas amigo, estaremos a perder a grande oportunidade histórica de negociar sem pressões uma outra forma de resolver a guerra. Não passarão muitos nos sem que tenhamos todos os países vizinhos de Angola e de Moçambique a servir os interesses dos guerrilheiros, e a guerra tornar-se-á mais sangrenta e odiosa, sem condições para qualquer retorno pacífico. Com tais ódios acirrados, poderemos enfrentar dias terríveis de humilhação para as tropas portuguesas.
A concepção de “províncias ultramarinas” não dá aos nativos (landins, macuas ou macondes) a alma que o governo português lhes quer trocar. Moçambique está condenado à orfandade, porque nos séculos que convivemos com estes povos nem sequer lhes soubemos ensinar a língua de Camões; são raros os locais onde se pode fazer entender a língua portuguesa. Quanto a outras formas de convivência, estamos longe de outros povos como os asiáticos e sul-africanos, para podermos exigir alguma coisa. Então que colonização é esta?
Beira, Abril de 1967
Joaquim Coelho
in "A Guerra Armadilhada" - pedidos para: jotasousas39@gmail.com
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